Entre as lendas urbanas mais
curiosas do Nordeste está sem dúvida a da Perna Cabeluda, uma entidade
sobrenatural que teria assombrado as ruas do Recife durante a década de 1970. Aparecendo onde menos se espera (e por falar nisso, onde é que alguém esperaria que aparecesse?), esta criatura era o oposto-simétrico do Saci
Pererê. Ou seja, era uma perna-sem-pessoa, em vez de uma pessoa-sem-perna.
Surgia pulando (eu já ia dizer “pulando num pé só”), atacava os transeuntes,
dava chute em todo mundo, e depois fugia pulando.
Foi cantada em verso e em prosa. Apareceu como protagonista em folhetos de
cordel como A Perna Cabeluda de Tiúma e São Lourenço de José Soares,
inclusive um em que ela enfrentava outra criatura mítica: A Véia debaixo da
cama e a Perna Cabeluda de José Costa Leite. Apareceu também em um vídeo
de Marcelo Gomes, A Perna Cabeluda (1995). Figurou em shows de Chico
Science & Nação Zumbi: Chico dançava com uma perna de pano estufada, e
depois a jogava no meio da platéia. Eu próprio a utilizei como tema num curta
para TV de 40 minutos para o programa Viva Pernambuco, em 1996,
dirigido por Romero de Andrade Lima e Cláudio Assis.
A Perna Cabeluda é um bom exemplo de como surgem essas criaturas folclóricas.
Uma vez eu estava em Recife conversando com o escritor Raimundo Carrero, que me
deu uma versão para o surgimento dessa lenda. Ele e Jota Ferreira tinham um
programa de rádio (pelo que me lembro ele era redator e Jota Ferreira o
apresentador, mas posso estar enganado). E uma noite, entre uma música e outra
deram uma notinha humorística, mais ou menos assim: “Pois é, meu amigo, a vida
no Recife não anda nada fácil!... Chega agora à nossa redação a notícia de que Fulano
de Tal, guarda-noturno, chegou em casa depois de uma jornada de trabalho e
deitou-se para dormir ao lado de sua esposa. Ouviu um barulho, e ao olhar para
baixo viu uma perna cabeluda embaixo da cama!”
A intenção era sugerir, com a imagem da perna cabeluda, a presença do “urso”,
do amante da esposa. A nota provocou muitos risos, e no dia seguinte, ele
voltaram à carga. “E atenção, minha gente... Sicrano de Tal, morador da
Imbiribeira, chegou em casa de viagem, e para sua surpresa viu a perna cabeluda
fugindo pela porta da cozinha!” E aí não parou mais. Usada inicialmente como
uma sinédoque visual (a parte pelo todo), a perna acabou ganhando vida própria.
Isto não quer dizer que qualquer coisa inventada vire automaticamente uma lenda. Neste caso específico virou porque a imagem resultante ficou ao mesmo tempo absurda e engraçada, ou pelo menos assim pareceu à galera onde a história começou a circular (ouvintes de rádio dos subúrbios recifenses). Imagens e figuras semelhantes são lançadas diariamente no caldeirão cultural. É um processo aleatório. Umas pegam, outras não. “Cultura popular” talvez se defina por este aspecto aleatório, onde não se pesquisa, não se planeja, e as criações dão certo meio que por acaso.
Isto não quer dizer que qualquer coisa inventada vire automaticamente uma lenda. Neste caso específico virou porque a imagem resultante ficou ao mesmo tempo absurda e engraçada, ou pelo menos assim pareceu à galera onde a história começou a circular (ouvintes de rádio dos subúrbios recifenses). Imagens e figuras semelhantes são lançadas diariamente no caldeirão cultural. É um processo aleatório. Umas pegam, outras não. “Cultura popular” talvez se defina por este aspecto aleatório, onde não se pesquisa, não se planeja, e as criações dão certo meio que por acaso.